quarta-feira, 13 de julho de 2011

EDUCAÇÃO E VALORES NO MUNDO CONTEMPORÂNEO PEDRO GOERGEN

PEDRO GOERGEN
Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 92, p. 983-1011, Especial - Out. 2005
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>


Introdução

Um tema tão amplo e controverso quanto educação e valores só pode
ser tratado de forma parcial e lacunar nos limites de um breve artigo.
Uma abordagem mais sistemática e abrangente exigiria um espaço
muito mais amplo como demonstra a farta bibliografia que existe a
respeito do tema. Embora seja sempre uma aventura arriscada enveredar
pelo campo da ética e da moral, é uma aventura dia a dia mais urgente e
necessária. Particularmente, desde a idade moderna, quando Deus deixou
de ser tanto o fundamento indiscutível das normas morais quanto o ponto
de referência para as decisões morais do homem, a busca incessante de novas
formas de legitimação tornou-se preocupação constante de filósofos, psicólogos,
sociólogos, antropólogos, economistas, politicólogos e pedagogos.
Hoje, esta preocupação espraia-se por todas as áreas do saber incluindo a
comunicação, a genética, a biologia, a medicina etc. Podemos dizer que a
preocupação ética tornou-se universal e está presente em todos os âmbitos
da vida humana.
Tal universalização deve-se ao próprio desenvolvimento da racionalidade
moderna que, ao estabelecer uma relação intrínseca entre as dimensões
teóricas (científicas) e as dimensões práticas (éticas), fez com que ambas
sempre estejam presentes na própria matriz de qualquer conhecimento. Os
debates contemporâneos sobre a relação do conhecimento científico e as
possibilidades técnicas de seu uso para manipulação da vida nos mostram
que a preocupação ética é coetânea ao próprio pensamento. Mesmo assim,
como diz Cortina (2003, p. 18), “embora a ética esteja na moda e todo
mundo fale dela, ninguém chega realmente a acreditar que ela seja importante,
e mesmo essencial para viver”. Há uma curiosa ambigüidade entre o
discurso ético que se dissemina e ocupa todos os espaços e a efetiva importância
que se dá à ética no campo prático.
Embora educação e ética estejam relacionadas desde os primórdios
de nossa civilização, esta discrepância entre a teoria e a prática também
sempre foi muito nítida. Ao mesmo tempo em que todos reconhecem a
importância da relação entre ética/moral e educação, tanto nas famílias,
nas instituições sociais, na mídia e também na própria escola, o tratamento
dispensado à ética denota antes menosprezo que apreço. No caso
da escola, por exemplo, certamente não há diretor, nem orientador ou
professor que não se digam comprometidos com a relevância da ética para
o agir educativo. Mesmo assim, ao primeiro olhar sobre a estrutura
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curricular e o quotidiano escolar, constatamos que a ética ocupa um lugar
bastante singelo, muitas vezes restrito a um recorte disciplinar ou,
quando muito, a uma atividade transversal.
Na raiz desse aparente ou real desinteresse há, a meu modo dever,
uma questão muito concreta: o que pode ou deve a escola fazer, em termos
de educação ética, no contexto de uma sociedade democrática e
pluralista que não dispõe de valores em torno dos quais haja consenso e
que, ademais, não está disposta a inculcar nos jovens valores ou formas
de comportamento que não são partilhados por todos. A sociedade
multicultural, fortalecida pelo curso da globalização e da mobilidade social,
em que partilham espaço múltiplas visões de homem, de vida e de
mundo, veio agravar ainda mais este desnorteamento da educação e da
escola. Há tantas disparidades que a todo o momento nos encontramos à
porta do relativismo. Não só as diferenças culturais de nível macro, como
as existentes entre o primeiro e o terceiro mundos, mas também as de
nível micro, existentes no interior das sociedades entre os vários grupos
sociais, culturais e étnicos exigem formas diferenciadas de educação ética.
A escola que deve servir e respeitar a todos encontra-se ante um desafio
de difícil solução.
Penso que na história da filosofia prática (ética) há duas vertentes
que determinam desde a raiz o comportamento moral do homem. Tratase,
de um lado, da vertente que privilegia o indivíduo e, de outro, da
que privilegia a sociedade. Nas páginas que se seguem, gostaria de discutir
um pouco esta relação entre estas duas dimensões da ética e da moral
desde o recorte dos valores.
Como primeiro passo, julguei necessário um aclaramento do próprio
conceito de valor. A seguir, destaco alguns momentos históricos que
privilegiam o viés individual e, na seqüência, faço o mesmo, porém, dando
destaque a autores que defendem a sociedade como fundamento ético.
Nos itens quatro e cinco em rápidos traços, chamo a atenção para a
concepção de valor da vertente pós-moderna e teórico-crítica. Por último,
faço algumas considerações sobre a formação do sujeito moral com
apoio em Josep Puig.
1. Definição do conceito valor
O estudo da problemática dos valores é muitas vezes denominado
de axiologia, que é um termo derivado do grego axia e que significa “va986
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lor”. Num trabalho de natureza filosófica sobre valores é conveniente, antes
de tudo, esclarecer, pelo menos em termos gerais, o sentido do conceito
de valor, apontando também algumas das dificuldades que lhe são
inerentes. De início, podemos adiantar que não há um só, mas muitos
sentidos para o termo valor como veremos a seguir, assim enunciados por
André Lalande (1999) no seu Vocabulário técnico e crítico da Filosofia.
a) característica das coisas que consiste em serem elas mais ou menos
estimadas ou desejadas por um sujeito ou, mais comumente,
por um grupo de sujeitos determinados. Este é um significado
subjetivo.
b) Característica das coisas que consiste em merecerem elas maior
ou menor estima. Este é um significado objetivo.
c) Característica das coisas que consiste em elas satisfazerem um
certo fim. Trata-se do caráter objetivo/hipotético.
d) Característica de coisas que consiste no fato de, em determinado
grupo social e em determinado momento, serem trocadas
por uma quantidade determinada de uma mercadoria tomada
como unidade.
e) Preço que se estima do ponto de vista normativo deva ser pago
por um determinado objeto ou serviço (justo valor).
f ) A significação não só literal, mas efetiva e implícita que possuem
uma palavra ou expressão (Lalande, 1999, verbete ‘valores’).
Para se ter uma noção do desenvolvimento histórico da concepção
de valor e de seus diferentes significados é útil recorrer também ao Dicionário
de Filosofia de Nicola Abbagnano (1970). Desde a Antiguidade, o
termo foi usado para designar a utilidade ou o preço de bens materiais
ou o mérito de pessoas. Este significado não tem valor filosófico porque
não gerou problemas filosóficos. O uso filosófico só começa quando o seu
significado é generalizado para qualquer objeto de preferência ou de escolha.
Isto aconteceu pela primeira vez com os estóicos,1 os quais introduziram
o termo no domínio da ética e chamaram valor os objetos de
escolhas morais. Os estóicos entendem o bem como algo subjetivo, como
um objeto de escolha particular (preferência). Distinguiam entre valores
obrigatórios e valores preferenciais que foram mais tarde designados como
valores intrínsecos ou finais e valores extrínsecos ou instrumentais (cf.
Abbagnano, 1970, verbete ‘valor’).
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No mundo moderno, a noção subjetiva de valor é retomada por
Thomas Hobbes (1588-1679) que dizia que o valor não é absoluto, mas
depende da necessidade de um juízo. Valor, portanto, é aquilo que é estimado
como tal através de um juízo. A expressão “juízo de valor”
(Werturteil), que parece ser de origem teológica, difundiu-se primeiro na
Alemanha, de onde se propagou para todo o domínio filosófico. Neste
campo há uma importante distinção a ser feita entre o ponto de vista do
conhecimento ou explicação e o ponto de vista da avaliação. A confusão
entre estes dois âmbitos reinou durante muito tempo e foi criticamente
distinguida por Immanuel Kant (1724-1804) e David Hume (1711-
1776) ao atribuírem à religião o ponto de vista avaliativo e à filosofia o
ponto de vista intelectual, explicativo, do conhecimento ‘noético’.
Para Kant o valor é o dever ser de uma norma (portanto, um a
priori) que pode não ter realização prática, mas que atribui verdade, bondade
e beleza às coisas julgáveis. Nesse sentido, os valores não têm realidade
ou ser, mas são o dever ser (sollen). Esse ponto de partida kantiano
foi explicitado por Heinrich Rickert (1863-1936) que menciona seis domínios
de valor: a lógica, a estética, a mística, a ética, a erótica e a filosofia
religiosa. A cada um desses domínios corresponde um bem: a ciência,
a arte, o uno/todo, a comunidade livre, a comunidade do amor, o mundo
divino. Por sua vez, a relação do sujeito com estes objetos se dá por
meio de: juízo, intuição, adoração, ação autônoma, unificação, devoção.
O sentido das coisas é a sua referência ao mundo dos valores que assim
se inserem na história e são realizados pelos homens. Esta posição, seguida
por muitos filósofos, reconhece, de um lado, que o valor está presente
ao homem e suas atividades na forma de um dever ser e, por outro, supõe
que seja independente e indiferente ao mundo humano. Nesse sentido,
o valor é uno, universal e eterno, em contraposição à multiplicidade, particularidade
e mutabilidade das manifestações concretas das quais deveriam
ser a regra.
A solução de Kant do a priori transcendental não se mostrou eficiente.
Procurando outro caminho, Max Scheler (1874-1928) chega ao
intuicionismo, na experiência sui generis de natureza sentimental. Os valores
são objetos completamente inacessíveis ao intelecto, que é cego
como o ouvido para as cores. O valor é o objeto intencional do sentimento
como a realidade é o objeto intencional do conhecimento. O modelo
de Scheler ressuscita, ao nível do sentimento, a mesma antinomia
entre o relativo e o absoluto dos modelos anteriores. Nicolai Hartmann
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(1882-1950) afirma que os valores só são tais com relação ao homem.
São, portanto, relacionais (e não relativos), mas, por outro lado, afirma
que os valores têm um ser em si, independente da opinião do sujeito,
sendo, portanto, imutáveis e absolutos.2
O itinerário do termo ‘valor’ no mundo moderno deve-se em boa
parte à obra de Nietzsche e ao escândalo que provocou sua intenção de
inverter os valores tradicionais. Foi em Nietzsche, especialmente em suas
obras Jenseits von Gut und Böse (1886) e Zur Genealogie der Moral (1887)
que ‘valor’ tornou-se um dos conceitos centrais da filosofia em torno do
qual girou, na sua quase totalidade, a discussão moral. É também desde
essa época que se estabeleceu a distinção entre um conceito metafísico
ou absoluto e um conceito empirista ou subjetivista de valor. Na primeira
acepção, valor assume um status metafísico, independente de sua relação
com o homem. No segundo sentido, valor inclui sua relação com o
mundo humano, ou seja, com o homem e sua historicidade.
Em Jenseits von Gut und Böse encontra-se uma passagem na qual
Nietzsche deposita sua esperança “em espíritos fortes e bastante independentes
para dar impulsos a juízos de valor opostos, para reformar e inverter
os valores eternos; em precursores ou homens do futuro que no presente
formem o fundamento que abrigará a vontade dos milênios a abrir
novos caminhos” (1886, § 203, p. 90). Os valores tradicionais são
ironizados por Nietzsche como valores eternos e invertê-los foi a principal
finalidade de sua filosofia. Sua intenção era a substituição dos valores
da moral cristã, a seu ver fundada sobre o ressentimento,3 portanto, sobre
a renúncia e o ascetismo, por valores vitais que nascem da afirmação
da vida e da aceitação dionisíaca.
Esta posição de Nietzsche foi interpretada como relativista e passou
a ser o objeto preferido da crítica dos absolutistas. Na verdade, parece
ser difícil comprovar um relativismo de valores a partir dos escritos
de Nietzsche. O que ele queria era substituir os valores tradicionais
calcados, como disse, no ressentimento por novos valores que favorecem
a vida. Para Nietzsche, há uma relação intrínseca entre valor e ser
humano, ou seja, não há valor independente do modo de ser do homem.
Trata-se certamente de uma tese empiricista ou subjetivista, mas
não relativista de valor.
O relativismo nasce de posições como a de Christian Ehrenfels
(1859-1932) que define valor como a simples desejabilidade. Com isso,
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introduz-se pela primeira vez a noção de possibilidade. Valor não é a coisa
desejada, mas o objeto desejável. O interesse efetivo é apenas uma possibilidade.
Com este conceito nasce o relativismo dos valores no coração
do historicismo, isto é, nasce o entendimento de que os valores têm relação
com a história. Para Wilhelm Dilthey (1833-1911) é a própria história
que institui e determina os valores, os ideais, a finalidade conforme
se estabelecem os significados dos homens e dos acontecimentos. Os valores
e as normas, portanto, nascem e morrem na história e não existem
além nem acima do seu curso. A objetividade deriva apenas da correlação
entre sujeito e objeto. Não existem valores absolutos; só existem aqueles
que os homens reconhecem em determinadas circunstâncias. Os valores,
portanto, não constituem uma realidade ontológica à parte, mas são uma
qualificação categorial que pode referir-se a qualquer objeto.
Como se vê, atribuem-se ao valor dois caracteres contrastantes, o
absoluto e o relativo: o primeiro constitui o modo de ser do valor em si e
o segundo, o seu modo de ser na história. A história é aqui entendida
como relativa, como uma criação humana. Esta também é a posição de
Max Weber (1864-1920) que via na história uma incessante criação de
valores, cada qual relativo ao fugaz momento em permanente luta com
valores diferentes que se oferecem ao arbítrio do homem.
Este mesmo reconhecimento da pluralidade de valores encontra-se
no filósofo norteamericano John Dewey (1859-1952), que definiu a filosofia
como a crítica dos valores. Toda a valoração inteligente é também crítica
porque faz um juízo a respeito da coisa que tem valor imediato. Toda a
teoria do valor é necessariamente um ingresso ao campo da crítica. A crítica,
nesse sentido, não é senão a disciplina inteligente das escolhas humanas.
Tal teoria implica necessariamente uma avaliação da relação entre meios
e fins. Não se pode escolher um fim sem pensar nos meios.
Todos estes conflitos nunca foram superados por qualquer posicionamento
filosófico-ético que tivesse sido aceito não só como hegemônico,
mas como consensual. Este rápido olhar histórico, feito sem pretensão
teórica mais aprofundada, nos ajuda a ver que o conceito de valor é cheio
de ambigüidades e varia de autor para autor e de época para época. Ainda
hoje não encontramos nenhuma unanimidade a respeito de seu sentido.
Como, então, falar de valores? Eu vou usar, no presente texto, o termo
valor como princípios consensuados, dignos de servirem de orientação
para as decisões e comportamentos éticos das pessoas que buscam uma
vida digna, respeitosa e solidária numa sociedade justa e democrática.
990
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2. Valores na vertente individualista
A relação entre moral e educação ou, ao nível teórico, a relação entre
ética e pedagogia vem sendo tematizada desde os primórdios de nossa
cultura. Tais reflexões, que fazem parte das obras dos mais eminentes
representantes da história do pensamento ocidental, culminam, não raro,
na estilização de uma figura ideal de educador que, além de suas habilidades
didáticas, também se distingue por sua postura moral exemplar.
Para Platão, por exemplo, é a figura de Sócrates que incorpora o ideal de
educador.4 Os ensinamentos e as posturas edificantes do educador
Sócrates se destacam sobre o fundo de contraste constituído pela imagem
negativa de outro tipo de educador que é a do sofista. No seu diálogo
Protágoras, Platão descreve o sofista como aquele cuja força se encontra
no discurso e que manipula os conhecimentos vendendo-os aos jovens
a troco de pagamento. Protágoras, que era um dos mais destacados oradores
dentre os sofistas, promete aos jovens um conhecimento mediante
o qual se tornariam, dia a dia, mais virtuosos. Mas Platão acusa os sofistas
de farsantes, uma vez que, ao invés da virtude, conforme prometem,
estariam apenas ensinando a imoral arte de convencer e de manipular as
pessoas.
Sócrates (Platão), ao contrário, defende a posição de que a virtude
não pode ser ensinada. Em termos de educação moral, compara sua função
à de uma parteira. Diz-se ignorante se dele se esperasse algum conhecimento
ou receita no campo da moral. Não faz longos discursos sobre a
moral como os sofistas, mas apenas perguntas perturbadoras que desestabilizam
os jovens nas suas opiniões e os induzem a buscar, eles mesmos, a
solução de seus problemas. Com isso, os jovens percebiam que a virtude
não decorre de um processo racional de explicações conceituais, senão que
de uma reflexão pessoal e autônoma sobre as decisões práticas mais corretas.
Competência moral só alcança aquele que aprende, por meio de esforço
próprio, a agir com responsabilidade e não aquele que aprendeu fórmulas
teóricas sem relevância prática. Para Sócrates, há uma relação intrínseca
entre ética e educação, porquanto o conhecimento ético deve orientar o
agir. Não sobre o educador e seus ensinamentos, mas sobre si mesmo é
que o aluno deve fixar sua atenção para que aprenda a conduzir seu agir
segundo a idéia de Bem. O educador não atua nem como exemplo nem
como autoridade, mas como aquele que ajuda o educando a agir segundo
a idéia de virtude (Bem) que se encontra em seu interior.
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Esta forma de pensar a moral a partir do indivíduo e da subjetividade
perdurou pelos séculos afora, passando por Agostinho, Tomás de
Aquino e pelos renascentistas, chegando até Jean Jacques Rousseau
(1712-1778), que inaugura a perspectiva moderna logo assumida e
vigorosamente desenvolvida por Kant. O pensador francês concentra sua
atenção na figura do educando Emílio, cuja natureza é per se boa, e na
educação negativa que deve preservá-lo das influências maléficas da sociedade.
Ao educador do Emilio, que sugestivamente não tem nome, não
cabe outra tarefa senão a de proteger seu protegido que, por si só, saberá
desenvolver a sua natureza, aprendendo, aos poucos, os códigos morais
que devem inspirar e orientar o seu comportamento. Coerentemente,
Rousseau propõe o retorno ao estado natural e a uma educação que não
interfira no desenvolvimento natural da criança.5
Para Kant, que, aliás, foi grande admirador de Rousseau, a educação
tem a função de transformar o ser humano em ser humano: “O homem
não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele
é aquilo que a educação dele faz” (Kant, 1996, p. 15). Boa educação é
aquela que dá origem a tudo o que há de bom no mundo. Para tanto,
basta desenvolver os germes e disposições para o bem que existem no interior
do ser humano. Em contraposição ao bem, que é a ordem, o mal
decorre da desregulamentação da natureza. Para Kant, o homem é um
ser inacabado que tem em si uma disposição para o bem, que precisa ser
desenvolvida. Já que o mal aparece quando permitimos que a natureza se
desenvolva desregradamente, a educação moral consiste no cuidado de
encaminhar as disposições naturais para o bem, mediante regras.
O processo educacional deve submeter a natureza humana a regras
por meio da disciplinação,6 da cultivação, da civilização e da moralização.
Esta função não pode ser cumprida pelo professor que transmite informações,
mas pelo educador que educa para a vida. “O bom professor”, assim
Annemarie Pieper resume o pensamento de Kant, “deve estar, ele mesmo,
comprometido com a idéia de liberdade, a qual é ao mesmo tempo o objetivo
de sua atividade educativa na medida em que almeja transformar o
educando num cidadão esclarecido, maduro, autônomo, capaz de
autodeterminar-se e responder por seus atos” (2003, p. 143).
Sören Kierkegaard (1813-1855) retorna a Platão e reconhece em
Sócrates o mais proeminente educador e filósofo moral. Kierkegaard parte
do princípio de que qualquer ‘comunicação ética’ sempre tem um caráter
indireto, uma vez que ela não é possível na forma de uma transmis992
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são direta de informação teórica. A educação ética só pode realizar-se
como a indicação de uma ‘capacidade’ cuja realização só é possível a partir
da liberdade de cada um. Com este objetivo, Kierkegaard escreve textos
que propositadamente se aproximam dos diálogos platônicos, valendo-
se do uso de pseudônimos com a intenção de desviar o leitor da
pessoa do autor e, ao mesmo tempo, estimulá-lo a posicionar-se ante as
posturas do autor. O educador deve dominar a arte dialética de levar uma
vida em conformidade com as categorias morais e retrair-se enquanto pessoa
na intenção de promover o desenvolvimento da autonomia moral do
educando.
Na relação dos seres humanos entre si isto é o mais sublime: o educando é
para o educador estímulo para que se conheça; o educador motiva o educando
para o autoconhecimento; o educador não deixa após a morte nenhuma
pretensão com relação à sua influência sobre a alma do educando, da mesma
forma que o educando não pode imaginar que o educador lhe deva algo.
(Pieper, 2003, p. 145)
Há muitos outros pensadores que poderiam ser citados como, por
exemplo, Nietzsche, que cria a figura de Zaratustra na qual o engajamento
moral e o interesse pedagógico formam uma unidade. Zaratustra ensina
aos homens, por meio de imagens e alegorias, uma nova moral que ele
mesmo vive: a moral do super-homem. “Eu vos anuncio o super-homem”,
diz Zaratustra às pessoas que encontrou no mercado.7 “O homem antigo
é algo que deve ser superado. O que vocês fizeram para superá-lo? Todos
os seres até agora criaram algo para além de si mesmos: e vocês pretendem
ser a vazante dessa grande maré preferindo retornar ao animal ao invés
de superar o homem?” (Nietzsche, s/d., p. 13). Segundo Nietzsche, o
verdadeiro sentido do homem, o sentido da terra, encontra-se nele mesmo,
encontra-se no caminho em direção ao super-homem. Este é um objetivo
que não pode ser alcançado de uma vez por todas, mas apenas passo
a passo, nos grandes momentos em que o homem encontra a sua
identidade; nos momentos em que o sol se encontra a pino e as coisas
não projetam sombras. O objetivo, no entanto, está no percurso do caminho,
não na chegada; é o caminho que tem em si o destino.
Importante observar que todos estes autores, aos quais poderiam
ser acrescentados tantos outros, viveram em épocas bastante distintas da
nossa. Embora suas observações e ensinamentos ainda sejam valiosos até
hoje, encontramos também aspectos das relações entre ética e educação
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que ainda não existiam ao seu tempo. Aliás, Dilthey deixa este aspecto
histórico da consciência ética em grande evidência. No seu livro Versuch
einer Analyse des moralischen Bewusstseins (Tentativa de uma análise da
consciência moral) Dilthey analisa a relação entre ética, pedagogia e filosofia
da religião e conclui que a pedagogia recebe da ética os seus objetivos
gerais e da psicologia os procedimentos e normas através dos quais
ela pode alcançar tais objetivos. Como, porém, a ética não pode determinar,
de uma vez por todas, o sentido da vida, uma vez que o ideal é sempre
mutável e condicionado historicamente, a pedagogia pode ser uma
teoria universalmente válida na medida em que assume aquelas normas
éticas incondicionais que têm validade perene e não dependem das circunstâncias
históricas.
Como podemos ver, a tradição ética, da qual aqui apenas pinçamos
alguns momentos, está fundamentalmente focada no indivíduo. Sócrates,
como não sabia responder à pergunta o que é o homem?, contenta-se com
a busca e nos convida ao exame cuidadoso de nossas próprias vidas individuais,
escutando sempre nossa consciência interior. Também Aristóteles,
do qual nem falamos aqui, embora faça menção ao ethos social, referese
à história como o domínio do indivíduo, do único e do irrepetível,
colocando a responsabilidade do agir moral sobre o indivíduo.8 Também
Santo Agostinho, que já preconiza o subjetivismo de Descartes, nos ensina
que, para conhecermos o bem, temos que olhar para a nossa
interioridade, onde à luz de Deus saberemos como melhor agir. Depois,
já na modernidade, para além de Rousseau, Kant e Kierkegaard, também
para Goethe o individuum est ineffabile.
3. Valores na vertente social
Há uma particular proximidade entre ética e pedagogia. Isto se
deve ao fato de haver uma influência mútua entre moral e educação. O
ser humano não é um ser moral por natureza, mas precisa ser educado
para a moralidade. O comportamento natural do ser humano é, de início,
egocêntrico (Piaget) no sentido de que, em princípio, são sempre as
necessidades individuais que têm prevalência e orientam o agir das pessoas.
À semelhança dos outros animais, portanto, o homem busca por
natureza a vantagem própria, ou seja, a satisfação de suas necessidades,
instintos e desejos. Se a este estado natural não fosse contraposta a exigência
moral do reconhecimento, em grau de igualdade, das necessida994
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des dos outros seres humanos, instalar-se-ia aquela situação descrita por
Hobbes no seu Leviatan: a guerra de todos contra todos, da qual sempre
saem vencedores os mais fortes e hábeis. Posição, portanto, contrária à
defendida por Rousseau que, no Emílio, assume, como vimos, o ponto
de vista de que o homem é bom por natureza, pervertendo-se através do
contato com a civilização e a cultura.
Tradicionalmente, tanto kantianos quanto utilitaristas começavam
por estabelecer o bem, o dever, a utilidade como um axioma do qual deduziam,
em seguida, algumas máximas que constituíam a moral prática
e aplicada. Contra isso Durkheim afirma que moral não precede a realidade,
mas deriva dela e a expressa. A seu ver, não se pode construir uma
moral completa e impô-la mais tarde à realidade; ao contrário, é preciso
observar a matéria para dela inferir a moral. É necessário entender a moral
em suas múltiplas relações com os inúmeros fatos que lhe definem a
forma e que ela, por sua vez, regula. Se for isolada deles, a moral parece
não se relacionar a coisa alguma, mas flutuar no vazio (2003, p. 28).
Durkheim (idem, p. 35) afirma que “a moral não é um sistema de regras
abstratas que as pessoas trazem gravadas na consciência ou que são
deduzidas pelo moralista no isolamento de sua sala. É uma função social
ou, mais que isso, um sistema de funções formado e consolidado sob a
pressão das necessidades coletivas”.
Um dos conflitos fundamentais no campo da moral está ligado à
natureza ambivalente do ser humano, que tanto é ser individual quanto
social. A estas duas faces do humano ligam-se duas estratégias da formação
moral das quais uma privilegia o aspecto subjetivo/individual e a outra
o aspecto intersubjetivo/social. Aqueles autores que assumem leituras
sociológicas e que têm em Durkheim seu mestre maior defendem a posição
de que a educação moral deve integrar os indivíduos na comunidade.
Para o sociólogo francês,
a moral e o direito são apenas hábitos coletivos, padrões constantes de ação
que se tornam comuns a toda uma sociedade (...) e à medida que o meio em
que vivemos se torna a cada dia mais complexo e mais flexível, devemos ter
a iniciativa e a espontaneidade necessárias para segui-lo em todas as suas variações,
para mudar conforme ele muda. (Durkheim 2003, p. 24)
Durkheim usa a beleza plástica da alegoria para expressar seu entendimento
da relação entre moral e sociedade: “a vida econômica desenvolve
um leito ao qual se ajusta o material que por ele flui” (idem, ibid.).
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É incisiva a sua crítica aos modelos metafísicos ou teológicos de moral:
“Não se pode construir uma moral completa e impô-la mais tarde à realidade;
ao contrário, é preciso observar a realidade para dela inferir a moral.
É necessário entender a moral em suas múltiplas relações com os inúmeros
fatos que lhe definem a forma e que ela, por sua vez, regula”. Como
vemos, a formação moral aparece no texto de Durkheim como um processo
mediante o qual os indivíduos recebem da sociedade os valores e
normas vigentes. Tais preceitos são impostos aos indivíduos a partir de
uma autoridade superior externa à qual não podem opor-se, restandolhe
como única alternativa a submissão. As normas morais são obra coletiva
sobre a qual os indivíduos têm pouca ou nenhuma influência. “Assim
a maior parte das instituições morais ou sociais não são resultantes
de cálculo ou razão, mas de causas obscuras, de sentimentos subconscientes
e de motivos que não têm qualquer relação com os efeitos que produzem
e que, em conseqüência, eles não podem explicar” (idem, ibid.,
p. 33-34).
Trata-se de uma concepção de moral caracterizada pela imposição,
sem espaço para a autonomia e a responsabilidade do sujeito. Este não
tem outra tarefa senão esforçar-se para conhecer a natureza e a razão das
normas sociais e incorporá-las. E é mediante este processo de reconhecimento
e incorporação que se abre ao sujeito a possibilidade de superar
sua determinação e heteronomia e conquistar a autonomia. Assimilando
as normas, tornando-as de certo modo suas, o indivíduo reconquista sua
autonomia.
Dessa concepção de moral decorre um modelo de educação que
consiste na transmissão de valores fixos e inapeláveis de geração em geração.
As crianças e jovens são levados a reconhecer a autoridade e seguir
seus mandamentos. Durante muito tempo, este tipo de educação ficou a
cargo da religião. Com o descrédito da autoridade religiosa e a crescente
racionalização da sociedade ocidental, a solução heterônoma sofreu uma
profunda revisão, passando a assumir traços de uma ética laica.
Mesmo assim, e apesar do distanciamento da esfera religiosa, as
novas éticas, embora não religiosas, preservaram, sobre outra base, o mesmo
princípio da autoridade. Entre elas incluem-se aquelas de vertente
historicista e sociológica. As primeiras partem do princípio de que a história
é determinada por leis inexoráveis que antecipam o futuro. Assim
sendo, basta assumir como princípios orientadores do comportamento
moral aqueles valores que presumivelmente serão predominantes no fu996
Educação e valores no mundo contemporâneo
Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 92, p. 983-1011, Especial - Out. 2005
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turo. As de vertente sociológica, por sua vez, assumem os fatos morais
como determinados exclusivamente pelas condições sociais.
No seu intento de fugir dos valores impostos pela religião, Durkheim cai, por
sua vez, em nova autoridade externa e heteronômica: a sociedade. (...) É a
sociedade que, uma vez abandonadas as crenças religiosas, se constitui no elemento
a que devem ser submetidas a vontade e a conduta das pessoas”.
(Puig, 1998, p. 31)
Também neste caso, o sujeito não é livre para tomar suas próprias
decisões de acordo com a sua consciência. A consciência deve submeterse
às normas e valores vigentes na sociedade. Agir moralmente significa
agir em conformidade com as normas estabelecidas em sociedade. A nova
autoridade moral que substitui a autoridade religiosa como poder legitimador
das normas, tornando-as obrigatórias para todos, é a própria sociedade.
Para Durkheim, agir moralmente é agir segundo o interesse
coletivo e, neste sentido, moral pressupõe disciplina e, numa fase mais avançada,
adesão, solidariedade e vinculação ao grupo social. Os seres humanos
reconhecem na sociedade algo superior à sua individualidade e acreditam
que agindo segundo o interesse coletivo realizam de forma melhor
sua própria natureza, “pois moral e direito são apenas hábitos coletivos,
padrões constantes de ação que se tornam comuns a toda uma sociedade.
Em outras palavras, são como a cristalização do comportamento humano”
(Durkheim, 2003, p. 24).
Como, porém, conciliar esta moral que é imposta a partir de fora
com a autonomia da vontade individual? Durkheim responde aludindo
às ciências naturais: tornamo-nos livres perante a natureza respeitando as
suas leis. Analogamente nos tornamos livres na sociedade reconhecendo
as razões porque suas normas e leis nos são impostas. Para o sociólogo
francês, “é necessário proceder da mesma forma em moral. O bem, os
deveres e os direitos não são dados da experiência. O que observamos diretamente
são bens, deveres e direitos particulares. Para descobrir a fórmula
que abrange todos é necessário estudar primeiro cada um em si,
em vez de tentar absorver num só fôlego uma definição geral da moralidade”
(idem, ibid., p. 116).
Facilmente podemos reconhecer que, segundo esta proposta de
Durkheim que se reduz à aceitação e reconhecimento das normas e valores
morais vigentes na sociedade, a educação moral fica reduzida à socialização.
De fato, na escola os alunos devem ser educados para a discipliEduc.
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Pedro Goergen
na (obedecer e observar as normas) e para o reconhecimento das normas
(aceitá-las porque representam a melhor forma de convivência). Neste
modelo, o educador evidentemente assume uma função central como autoridade
moral que deve exigir disciplina, ainda que de forma dosada, de
modo que as exigências não sejam como um fardo, mas reconhecidas
como necessidade social. Pela educação moral, o indivíduo é levado a aderir
à sociedade política em geral.
Não se pode negar que o modelo de Durkheim fomenta no aluno
o gosto pela vida comunitária desde o momento em que ele entra na escola.
É tarefa da escola e do professor, enquanto autoridade moral, criar
nos jovens o sentimento de vinculação e de pertença a uma coletividade.
Mas, de outra parte, a educação moral fica reduzida à adaptação heterônoma
ao modelo social vigente, esquecendo a questão da formação da
consciência moral autônoma. A autonomia moral em Durkheim não inclui
o questionamento e eventual recusa da norma. Não há, portanto, a
possibilidade da dissidência ou do inconformismo.
4. O crepúsculo do dever9
Além dessas proposições positivas, há aqueles autores que dizem
que qualquer tentativa de fundamentar a moral está fadada ao insucesso.
Preferem dizer que a moral não pode ser fundamentada. Hoje são, sobretudo,
os pós-modernos que assumem tal posição. Tudo começou
com Nietzsche e depois Heidegger, que lançam uma virulenta crítica
contra a metafísica e a razão moderna, a razão que se atribui a capacidade
de tudo poder fundamentar. Com isso, lançam as raízes do movimento
de ceticismo moral que hoje designamos como pós-modernidade.
“A modernidade”, diz Vattimo (1992, p. 20), “é a época da
legitimação metafísico-historicista, a pós-modernidade é o questionamento
explícito deste modo de legitimação”. Neste contexto, conforme
observa Bauman (1997, p. 6), “a própria ética é denegrida e
escarnecida como uma das construções tipicamente modernas agora
quebradas e destinadas ao cesto de lixo da história; grilhões uma vez
considerados necessários, agora estimados claramente supérfluos: outra
ilusão que homens e mulheres pós-modernos podem muito bem dispensar”.

Pesquisado por: Francisca Andréia Noberto Dantas.